Doze anos depois de Madrid. A fé dos jovens está viva e as conversas também passam pelos abusos

por Carla Quirino - RTP
Passagem dos símbolos pela paróquia de Alverca do Ribatejo | COP Alverca e Sobralinho Padre Marcelo Boita - COP Alverca e Sobralinho

A Jornada Mundial da Juventude de Madrid, em 2011, reuniu cerca de dez mil jovens portugueses. À época, Filipe e Mariana esperavam viver uma experiência única junto de milhares de católicos de todo o mundo. Agora, em 2023, a RTP voltou a encontrar alguns dos participantes portugueses. Doze anos depois, o padre Marcelo Boita descreve a memória feliz de estar entre tantos jovens com a mesma fé sem medo de a testemunhar. Acredita que na Jornada de Lisboa o assunto dos abusos sexuais da Igreja vai estar presente nas conversas dos peregrinos.

Em 2011, cerca de dez mil jovens  portugueses viajaram até Madrid para participar na Jornada Mundial da Juventude. Entre 16 e 21 de agosto, o encontro contou com a presença do papa Bento XVI e peregrinos de mais de 100 nacionalidades vindos de todo o mundo.

Entre os portugueses estava um grupo de rapazes e raparigas da Vigararia de Alenquer, que partiram de Sobral de Monte Agraço em três autocarros com 150 jovens. Num dos veículos seguia o padre Marcelo Boita. Era pároco de Sobral de Monte Agraço, Sapataria e São Quintino e responsável pela Pastoral juvenil da Vigararia.

Tal como a maioria dos jovens peregrinos que acompanhava, era a primeira vez que o padre Marcelo iria participar numa Jornada. Tinha 28 anos. Doze anos passados, conta à RTP alguns momentos que o marcaram.

"São memórias muito boas, do antes, do durante e do depois. A JMJ de Madrid foi a minha primeira jornada por isso tudo era novo e confesso que não tinha muitas expectativas, fui à descoberta deixando Deus fazer caminho comigo e com os muitos jovens que me estavam confiados", recorda.

Desde as iniciativas para angariar fundos às reuniões de preparação, o padre sublinha "todo o dinamismo" que envolveu a preparação da viagem.

E acrescenta:"Penso que aos jovens que acompanhei lhes abriu os horizontes da sua pequena Igreja fechada na paróquia. Fê-los perceber que não seguem Jesus sozinhos e quando Ele nos chama está ao nosso lado e faz caminho connosco. Perceberam que seguir Jesus não é uma coisa de totós ou gente estranha". 

Foram estes momentos iniciais que a RTP acompanhou o percurso dos peregrinos rumo a Madrid.
Reportagem em 2011 durante a partida | Alberta Marques Fernandes e Carla Quirino - RTP

Filipe Ferreira tinha 17 anos. Continua a ser estudante. Está a terminar um doutoramento em Neurociência no King's College London em Londres, no Reino Unido. Fazia parte do grupo de peregrinos acompanhados pelo padre Marcelo.

Recorda que a JMJ em Madrid foi o primeiro encontro católico a nível mundial em que participou e o impacto que teve na vida de um jovem. "Acredito que tenha sido um dos momentos mais marcantes da minha vida", diz, para acrescentar que representa "a melhor recordação de uma vida vivida plenamente em comunidade"

Doze anos mais tarde, descreve "o encontro como um festival cheio que alegria, vida e partilha. Um festival sem confusões, sem complicações, mas sim cheio de um espírito de agradecimento, entrega e união".

Mariana Gonçalves também seguia no grupo. Com 16 anos, era estudante do secundário no curso de línguas e humanidades. Hoje é Assistente Social numa Estrutura Residencial Para Pessoas Idosas (ERPI). Ao começar a JMJ em 2023, Mariana recorda como viveu a sua primeira Jornada Mundial em 2011. 

"As expectativas eram altas, a curiosidade era muita e a vontade de participar também. Perceber o que todos diziam sobre as jornadas era único. Ao ler a mensagem do papa Bento XVI dirigida aos jovens do Mundo inteiro, refleti no tema dessa jornada: Enraizados e Edificados em Cristo, Firmes na Fé (Col 2,7). Senti que todos nós que íamos viver a Jornada precisávamos de construir, com solidez e na fé, a nossa casa que é Jesus. Ou seja, de colocar em prática o que aprendemos sobre os ensinamentos do Evangelho e da Igreja".
Reportagem em 2011 a caminho e chegada a Madrid | Alberta Marques Fernandes e Carla Quirino - RTP

E tal como a Mariana diz no fim da reportagem, já em Madrid, os jovens prepararam-se para ir à aventura e ao encontro das restantes comitivas de peregrinos. 

"A palavra de ordem foi romper barreiras e preconceitos de diversas e diferentes culturas para encontrar em cada um a linguagem do amor. Os momentos mais marcantes para mim nesta semana foi a chegada do Papa Bento XVI à Plaza Cibeles, com milhares de jovens que aguardavam a sua chegada, e poder-me encontrar com o ele e partilhar isso com tantos jovens de todo o mundo". "Rezarmos juntos com estes milhares e milhares de jovens foi um momento único que jamais imaginei viver", destaca a jovem peregrina.

Entre muitas memórias, o padre Marcelo recorda "estar rodeado de tantos jovens que têm a mesma fé e que não têm medo de a testemunhar". E sublinha "a alegria e cor de tantos jovens provenientes de tantos países que enchiam a cidade de Madrid, cantavam no metro, gritavam na rua, iam a espetáculos, rezavam juntos".
Reportagem em 2011 com os peregrinos portugueses nas ruas de Madrid | Alberta Marques Fernandes e Carla Quirino - RTP

Empolgado com inúmeras experiências, o padre destaca "a vigília de sábado à noite". E recorda que "quando o papa Bento começou a proferir a sua homilia desencadeou-se uma grande tempestade. Nós preocupados em não molhar os nossos sacos cama e mochilas e o santo padre, que nunca saiu dali mesmo incentivado a isso, estava preocupado connosco. E esta persistência do papa Bento ajudou-me a perceber como a Igreja deve ser perante as adversidades e ventos contrários, não deve desistir ou desanimar nem temer as tempestades". O padre recorda o silêncio que se seguiu depois do temporal "cheio de significado como o da criança no colo da sua mãe". 

Tal como o padre Marcelo, Filipe também sublinha que a vigília no aeródromo de Madrid foi uma "experiência arrepiante". "Todos os peregrinos passaram por uma enorme vaga de calor, trovoada e chuva torrencial. Contudo, em qualquer momento de oração conjunto, o que nos preencheu foi um silêncio de dezenas, se não centenas de milhares de jovens e graúdos. Nesse silêncio encontrei-me o mais próximo de Deus e da Igreja desde que comecei a minha caminhada com Ele".

Nesta última noite da Jornada, em Cuatro Vientos, Mariana concorda com os companheiros de viajem. Diz que a "marcou intensamente". E acrescenta: "Toda a caminhada até ao aeródromo, os cânticos, as orações, o frio e a chuva e a presença de um Papa que perante estas adversidades climáticas não arredou o pé e esteve sempre connosco. Foi verdadeiramente inesquecível. E um passo gigante na minha caminhada como Cristã Católica".
Reportagem em 2011 em Cuatro Ventos | Alberta Marques Fernandes e Carla Quirino - RTP

Para os jovens peregrinos, a viagem teve impacto nas vidas, tanto escolar como espiritual. O padre Marcelo, que tinha sido ordenado três anos antes, explica que a viagem se revelou "uma confirmação da missão de sacerdote como aquele que tem a missão de levar Jesus a todos sem exceção".

"Naquela semana todos estávamos agradecidos pelas famílias que nos acolheram, por todos aqueles que nos ajudaram e por todos os sorrisos partilhados vindos de todas as partes do mundo. Sentimos que o amor em Igreja ultrapassa fronteiras, línguas, ideologias políticas, raças e géneros. Desde esta experiência que me senti um cidadão do Mundo e, curiosamente, acabei por sair de Portugal uns anos mais tarde", argumenta Filipe.

Mariana, por sua vez, reitera: "Sinceramente esta viagem teve um impacto em toda a minha vida pessoal porque tive como referência toda a experiência vivida. Na minha vida escolar foi concluir o objetivo a que me propus de fazer - a licenciatura em Serviço Social - complementando a formação especializada em Gerontologia. Cuidar e estar mais próxima dos mais idosos e dos mais vulneráveis".
Em 2023, presença garantida em Lisboa

Filipe viajou de Londres para Lisboa no domingo para participar na JMJ: "Vou dois dias, com família e amigos. Infelizmente, este ano não tive muita preparação por razões profissionais".
 
Vai acolher  jovens em casa dos pais e participar na vigília e missa com o papa e prepara-se para concretizar um sonho: "Este ano vou cumprir a promessa que fiz à minha mãe 12 anos atrás, levá-la a umas JMJ".


Filipe Ferreira, fotografado pela mãe, Célia Ferreira, em Sobral de Monte Agraço. O jovem de 29 anos, residente em Londres, faz uma pausa no doutoramento em Neurociência para ajudar a família a acolher peregrinos vindos de Itália.

Mariana também vai marcar presença: "Sim irei, com família e amigos. Neste momento devido ao trabalho não irei poder estar como voluntária, como tanto gostaria. Vou integrar e ajudar como voluntária informal no apoio aos jovens que vem até a paróquia onde estou inserida (cocelho de Sobral de Monte Agraço). Serão cerca de 200 jovens italianos".

Desde março de 2020 que o padre Marcelo oficia nas paróquias de Alverca do Ribatejo, Sobralinho e Calhandriz, na Vigararia de Vila Franca de Xira-Azambuja, e responde empolgado: "Claro que vou participar. Se participei na de Madrid e na de Cracóvia, agora que é no meu país e na minha Diocese, não poderia faltar. Participarei não da mesma forma como em Madrid. Este ano somos nós os anfitriões por isso temos de preparar tudo para que os jovens que venham de fora se sintam em casa e sejam tão bem tratados como eu fui em Madrid".

O padre Marcelo explica que tem acompanhado o Comité Organizador Paroquial (COP) nas reuniões e divulgação das JMJ convidando todos a fazerem parte deste projeto.


Padre Marcelo. Passagem dos símbolos pela paróquia de Alverca do Ribatejo | COP Alverca e Sobralinho
Recomendações
A Jornada Mundial da Juventude, a decorrer nos primeiros seis dias de agosto, poderá ser um dos maiores eventos que Portugal alguma vez recebeu. O recinto junto ao Tejo, equivalente a 100 campos de futebol, deverá reunir mais de um milhão de pessoas.

Para todos os jovens peregrinos que participem na Jornada, Filipe recomenda "que se entreguem à experiência das JMJ com um coração aberto e pronto a dizer sim". Cada encontro mundial é único e especial, por isso "devemos encarar o desafio agradecidos por todos os que nos recebem e servem. A minha experiência diz-me que as melhores recordações das jornadas encontram-se em simples momentos vividos em Igreja".

Mariana acredita que o melhor conselho é que "os jovens não percam nem passem superficialmente sobre esta Jornadas. Que aproveitem ao máximo todos os momentos e as centenas de eventos espalhados por toda a cidade. E Porque a vivência plena de uma jornada marca a nossa vida espiritual e pessoal. Nós os portuguesas temos fama de ser acolhedores e termos um grande sentido de fraternidade com os demais. E a organização destas jornadas teve um empenho de milhares de jovens, da Igreja das pequenas comunidades locais e de toda a estrutura do Estado Português. Tem havido muitas críticas mas é um Evento único é incomparável que o nosso país e a Igreja Católica Portuguesa organiza e acolhe".

O padre Marcelo sublinha que a importância da JMJ assenta em "demonstrar que a fé não é uma coisa fechada dentro das igrejas, é algo que se vive e se transmite, que faz parte da vida toda e não só do domingo quando se vai à missa. Que não está encerrada na Igreja mas que sai ao encontro da cidade, dos que estão dentro mas também dos que estão fora, no fundo ir às periferias como nos pede o papa Francisco".

Para Filipe, eventos desta dimensão "tocam no coração de milhares de peregrinos, inspirando-os para serem melhor humanos e irmãos em Igreja". E reitera: "Não posso dizer que as JMJ mudaram a minha vida mas foram certamente momentos marcantes que ajudar a moldar a pessoa que sou hoje".
Conversas sobre os abusos sexuais na Igreja
No início de 2023, foi tornado público o relatório da Comissão Independente. A análise feita estima existirem quase cinco mil vítimas de abusos, desde 1950, perpetrados por elementos da Igreja Católica em Portugal. O escrutínio impôs o tema na sociedade e alastrará à JMJ de Lisboa.

Filipe diz acreditar que "a discussão de assuntos importantes como abusos da Igreja poderão surgir entre os jovens. Contudo, as JMJ são uma celebração de vida e alegria em comunhão".

Mariana argumenta que "muitos jovens católicos e não católicos ou sem credo evidentemente que estão preocupados com os casos dos abusos sexuais que aconteceram na Igreja e não só. É evidente que é sempre para os jovens um assunto desconfortável. Mas estou confiante que o Encontro do Papa com algumas vítimas de abusos sexuais seja um gesto público de pedido de perdão a todas os que sofreram de abuso sexual no seio da Igreja Católica".

Filipe defende ainda que "os fiéis sabem que, embora estes problemas sejam importantes e devam ser falados, também devem realçar que a Igreja, como instituição, tem sempre garantido um sistema de suporte para aqueles que mais precisam, especialmente crianças e jovens".

"Para mim", acrescenta Mariana, "a Igreja deu voz, através da Comissão Independente para os estudos dos abusos sexuais na Igreja Católica, ao silêncio que perdurou por tantos e tantos anos. E quis assim, na reconciliação e no pedido de perdão deste tão grave pecado, para que situações de tanto sofrimento não se voltem a repetir".

Mariana também acredita que "esta geração está determinada em construir um mundo mais justo e solidário. Tenho a certeza que com esta Jornada nasce um novo impulso a fé, a esperança, a caridade e ao acolhimento tendo os jovens como protagonistas na procura da promoção da paz, da união, e da fraternidade entre os povos e as nações de todo o mundo".

O padre Marcelo deixa claro que o assunto dos abusos "faz parte da conversa entre todos jovens e menos jovens": "É uma chaga muito grande, que nos faz sofrer a todos enquanto Igreja e enquanto sociedade. Penso que também faz sofrer os jovens mas ao mesmo tempo os ajuda a perceber que a Igreja é mais do que os nossos pecados e fragilidade, por maiores e mais hediondos que sejam. E que,  quem os praticar, deve ser investigado e julgado nas instâncias próprias".
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